Cardume
peixes e aquários e a lembrança
Há isso: o cardume. Dezenas, centenas, milhares de peixes na errática solidão do oceano à meia noite [nunca esqueço quando ele me falou da solidão de um peixe no oceano à meia noite, eu o amei ali.
A errática solidão — como se uma solidão pudesse vagar e essa vaga.
Em português, vagas e ondas tem o mesmo significado e isso me parece natural.
Mas há isso: o cardume. Os peixes em volta de mim, no desespero abissal de tudo que é vivo e respira.
Queria ficar em silêncio mas o cardume produz um som: […]
as barbatanas as guelras os grandes olhos
[sobretudo os grandes olhos
toda a anatomia de um peixe que veio morar no meu peito
esquecendo que meu peito é sem água.
Em espanhol, embora água seja uma palavra feminina, o artigo que a antecede é o masculino el, exceto se não me engano, no plural. Mas aqui só não há água.
Então há isso: o cardume. Em volta de mim e por dentro dos meus cabelos
contando um dois três quatro fios brancos
respirando água e desejando sal
perguntando colocações pronominais sem nenhum sentido
e o oceano à meia noite
esse lugar terrivelmente solitário
o fundo das águas que — ele me disse — são ainda ignorados
esse lugar gela meu corpo e minha pele reluzente de repente afasta o cardume e o peixe solitário [como o oceano, ele me disse, à meia noite]
mas o peixe solitário procura lugar no meu peito
e é tarde
não há água em mim que ele possa
e não há nenhuma água num coração de tanta terra
me bastou uma palavra
sempre é só uma palavra e eu […]
Não há água mais aqui
Já não há nenhuma água e o silêncio do meu peito é abissal e não há nenhuma água mas o silêncio é abissal como aquele do oceano à meia noite.
O silêncio é um abismo e eu […]
Em inglês, o verbo da paixão é o mesmo da queda — sorte a minha que eu penso em português, ouvi dizer.
Mas já não há nenhuma água. E havia tanta água. Sempre era tanta água mas bastava uma palavra porque é sempre uma palavra.
Já não há nenhuma água.