Cigana

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Rute Ferreira
2 min readSep 13, 2024
L’Odalisque au coffret rouge – 1927, Henri Matisse

Meus cabelos espalhados pelo chão

sorteados na mobília

esquecidos nos lençóis

[e como se fosse possível tua voz a lamber o meu ouvido dizendo que meus cabelos estão espalhados pelo chão sorteados na mobília esquecidos nos lençóis]

Pulseiras

batons

ligas de cabelo que se partem

[e te escuto dizer com a voz de ós fechados que minhas pulseiras batons e ligas de cabelo que se partem estão entre teus sapatos tuas cortinas tuas louças teus perfumes

sobretudo entre os perfumes]

Prendo a liga de cabelo no meu braço mas já sei que vou deixá-la

nos cantos dos bancos no sofá nas tuas pernas que enrodilham minha cintura

e que depois os meus cabelos

estarão presos em tuas mãos e na bancada da cozinha.

Minha pele vai ficando em tua casa

porque ora me queimo ora congelo

e minha vista de cigana intui de largo

que teu corpo encontra os restos

que espalho pela casa: tantos feitiços jogados — tantos pães e maçãs.

E um dia assim calculadamente mas

sem sequer me dar conta

deixei mais de mim e te avisei:

esqueci aí um livro.

Era isso que faltava porque […]

e

desde então meus cabelos minhas ligas de cabelo minhas unhas minha pele e tudo mais

repousam [desconfiadamente

no escandaloso musgo da tua retina e entre os teus perfumes

sobretudo em teus perfumes.

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