Longa Estrada

Rute Ferreira
14 min readApr 19, 2024
Oração antes do jantar, de Jan Steen, c.1660

Descansou o balde no chão. Não é fraco, mas essa foi a terceira ida, os braços mirrados precisam de um tempo, por isso recosta-se no tronco do jambeiro, protegido pela copa ainda jovem, que não oferece tanta sombra. Melhor que nada, pensa sem saber, em sua sabedoria de garoto antigo.

De onde está já pode ver a casa, a janela solitária aberta, a tramela do portão enferrujado, o cão Mudejo que espanta as moscas com o rabo. Na rua, o silêncio impera, pois no mormaço da tarde ninguém quer ficar na porta. Quando o sol baixar um pouco sabe que o pai e seu Genésio vão montar a mesa para o jogo de damas sob o pé de jambo na calçada onde ele está agora, sabe que a mãe vai catar os piolhos em Carmelita no batente da casa. Mas neste momento, a rua é silenciosa, os ruídos são quase imperceptíveis, e ele é um menino sozinho que acaba de voltar do poço da Fonte Grande, onde foi buscar água.

Suspira, estica os bracinhos, prepara-se para pegar o balde cheio de água outra vez. Faz força nas costas, nas pernas, o corpo preparado. Quando chegar em casa, o almoço decerto já vai estar pronto, ele lembra que a mãe estava fazendo sardinha. Não pode sentir ainda o cheiro, mas sabe que logo vai comer a mistura de peixe e arroz em pequenos bocados feitos com as mãos, como ele gosta. A antecipação do prazer do almoço gera nele uma certa pressa infantil, tropeça, mas o balde permanece cheio d’água, é experiente nisso de andar com baldes. Chuta a pedra que o fez tropeçar e é nesse gesto que percebe o nervoso de Mudejo.

O cão olha para a rua perpendicular à deles, que àquela hora devia estar vazia igual, mas não está. Um homem se aproxima, Mudejo late ansioso enquanto ele segura firme o balde, nem pensou em colocá-lo no chão. E foi por não ter pensado nisso que o menino sente a água molhar seus pés, ao derrubar o balde no susto do reconhecimento. É João Benedito que chega.

Na época, ele era pequeno. Ainda é pequeno, é certo, mas naquela noite não passava dos quatro anos de idade. Lembrava-se, contudo, do choro da mãe, dos repetidos pedidos dela a São Benedito, seu santo preto como os filhos, chorava tanto a mãezinha, rogava, clamava, fazia tantas promessas.

Carmelita se escondera para chorar também, barganhava mais baixo com Nossa Senhora, se o irmão voltasse naquela noite e a mãe parasse de sofrer ela ficaria sem cortar o cabelo por um ano. Melhor, dois anos. Assim garantia que ele ficasse mais tempo. Confuso, o menino olhava o pai, que não chorava. O homem apenas fumava o cigarro, os olhos num tempo que só ele via, talvez para trás, talvez para frente. Impossível dizer. Só não era ali. Aquela tinha sido a segunda vez. Da primeira o menino não se lembrava, criança demais. Mas sabia.

— O mano não volta? — quis saber. Carmelita baixou os olhos, a mãe elevou os pedidos. Escureceu rápido demais aquele dia, ou como num dia diferente, talvez tenha sido uma noite inteira apenas, um dia interminável. Mas um dia, como se fosse simples, terminou. Não falavam mais em Benedito. Sabia que a mãe rogara aos santos, e quando estes não responderam, pedira ao homem.

— Já fui atrás dele uma vez. Dessa vez não vou. Se quiser ir, que vá. Não vou mais atrás de filho que debanda.

A mãe chorava, cada dia mais silenciosa, ainda rogava aos santos. E agora, parece que um deles ouviu, pois é Benedito que ela vê, parado à porta, como quem pede licença pois sabe que não é mais a casa dele, sabe que no correr de suas fugas alguma coisa se perdeu e a família pode saber disso também, quem sabe evitar sua entrada, impedir sua volta. Ele fica parado. Não tem nenhuma bagagem, só traz um chapéu, que agora segura na mão, e os olhos muito secos, muito duros.

Não lembra da primeira vez, porque era muito criança. Mas reconstruiu a lembrança como se fosse dele, e agora tenta recuperar as peças. Benedito trabalhava numa oficina de bicicletas. Sabia consertar de tudo, e logo ele mesmo montaria a sua. Ganhava pouco, mas queria o quê? Aos quatorze anos, que mais um menino podia querer? No fundo, Benedito sabia que queria o mundo.

O mundo veio na pessoa de seu Conrado. Ao menos tinha sido esse o nome que o homem deu.

— Não é serviço pesado. Você fica lá com ele, o homem não tem filhos, sabe como é. Precisa alguém pra cuidar das coisas. Não é faxina, serviço de casa, pra isso ele tem uma menina que varre, limpa e passa. Mas ele precisa de um rapaz de confiança.

E prosseguia, citando as belezas da casa do homem, uma geladeira, o banheiro dentro de casa, um quarto só pra ele. Benedito sentiu o estômago borbulhar. Sabia que desejava ir, mas quando perguntou a distância, arrefeceu. De ônibus, eram dois dias de viagem. Pensou na mãe, na irmã. Tão longe. O irmãozinho. Longe demais. O pai.

O homem percebeu a hesitação e jogou o trunfo que tinha caso o menino desinteressasse.

— Você fica lá os anos que faltam pra ser de maior. E ele paga sua carteira.

Os olhos de Benedito abriram-se. Ele era todo incredulidade. Sabia dirigir, porque às vezes Ramalho pedia que ele guardasse o carro. Mas ter carteira de habilitação? Aquilo era muito. Calculou rapidamente: no fim do ano faria quinze anos, a partir daí não faltaria tanto. O homem parecia ler sua mente:

— Se você acha longe, a gente te arruma os documentos. Você nem parece tão novo.

Benedito refletiu. A cara estava tranquila, mas por dentro ele era um turbilhão. Estava nervoso, mas parecia muito decidido e calmo quando disse:

— Eu vou.

Combinaram. Ele não devia contar a ninguém que ia embora, especialmente ao pai. O homem ficaria furioso, era melhor que só soubesse quando o menino estivesse longe, na casa do empregador. Naquela noite ele não dormiu direito. Sonhava com uma casa com piso bom, sem as infernais goteiras, sem o pinga pinga dentro de casa a cada chuva, sem o aperto de dormir em uma rede na sala, uma casa com um quarto todo para si. Quando adormeceu profundamente, já era hora de ir trabalhar.

Despertou e viu o vai e vem de Carmelita, que se arrumava para a escola, pois sendo menina se arranjaria melhor se soubesse ler e escrever. Podia empregar-se datilógrafa. Benedito pensou que quando estivesse no bem-bom, pagaria à irmã um curso de datilografia. E daria uma geladeira à mãe. Procurou-a com os olhos, ainda da rede. Ela tinha o pequeno às saias, arrumava alguma coisa, vestia o menorzinho, cozinhava, ele não se lembra mais. A imagem da mãe era enevoada por um sem número de afazeres, ela sempre estava ocupada. Nunca a vira sentar-se na cadeira ou na beirada da rede para fumar um cigarro, como o pai fazia. Fechou os olhos, procurando reter a lembrança. Não os veria tão cedo.

Agora ele está na porta e vê as diferenças na casa. Antes que tudo se acalmasse e ficasse silencioso, Carmelita gritou como quem visse um fantasma. A mãe teve de segurar-se no encosto de uma cadeira, perdeu a cor, perdeu a voz. Depois, o opressivo silêncio dos reencontros. Mudejo agita o rabo, certo de estar diante de um grande acontecimento. O menino estala os dedos numa ansiedade crescente. João Benedito continua de pé, sua sombra tão grande (quando ficara tão grande?) encobrindo a luz pálida que vinha da porta. É dele a primeira fala.

— Mãe.

Escurecia e o filho não voltava. Não era criado em corda miúda, mas os pais começaram a se inquietar. A mãe olhava a imagem de São Benedito no altar, rezava movendo os lábios, guardava o som dentro de si.

O pai fumava na beirada da rede. Não aguentou e foi até a oficina. Lá dentro, tudo fechado. Onde o menino se metera, perguntava a si mesmo, mas não tinha ideia. Benedito não era dado às boemias, não era um pândego. Era menino organizado, e mesmo que pouco se deu bem na escola, era inteligente.

Ouviu do dono da oficina a história toda, calado, mas ia tecendo seus pensamentos enquanto o outro falava. Não, senhor, não sei para onde ele foi. Sim, senhor, ele ficou no trabalho até às seis. Não, senhor, ele saiu sozinho. Sim, senhor, ontem a tarde ele conversou com um homem. E indicou quem era o homem, porque não era um sujeito dali, estava na pensão. Ninguém se esconde em cidades pequenas, e o homem decerto não passara despercebido, pois assim que chegou na pensão de dona Mara e descreveu quem procurava, ela disse que sim, ele está aqui, está logo ali terminando de jantar, é seu Conrado o nome dele.

Não soube como, mas de repente seus dedos estavam no pescoço do homem, que dizia alguma coisa enquanto ele repetidamente perguntava:

— Cadê o meu filho, seu maldito desgraçado?

Agora ele está sentado e segura uma xícara de café. O café ralo da mãe. Ela nunca gostou de café forte, e depois de seis anos fora de casa, ele só toma café ralo quando deseja lembrar-se da mãe. Ele a observa, pela primeira vez sem a névoa. Ela está apenas olhando para ele, sem se ocupar com mil outras tarefas. Está olhando para ele e nos seus lábios um sorriso tenta se formar, mas não passa de uma tentativa. Ele percebe e pergunta:

— Onde ‘tá o pai?

— Na fábrica ainda — É Carmelita quem responde, e ele olha para ela como se a visse pela primeira vez. Está alta. Deve ter dezesseis anos agora. Um pouco mais velha que ele quando foi embora. Repara o menino, mal conhecido seu, mas que se lembrava.

— Ele cresceu né? — diz à mãe, que apenas concorda num gesto — Você lembrava de mim?

Imitando a mãe, o menino apenas faz um sinal positivo com a cabeça. A verdade é que se lembra muito pouco. Lembra de Benedito embalando a rede rápido demais, lembra que adorava isso, porque o mundo todo girava. Lembra de Benedito consertando seus chinelos com um prego e fingindo calçar, como se aquele pequeno par de calçados servisse em seus pés enormes. E lembra da noite em que a mãe chorou muito por Benedito, da segunda vez que ele foi embora. Lembra da briga antes disso. Mas dessas lembranças o menino não diz nada.

O destino trapaceou Benedito. O ônibus ficou parado tempo demais, um pneu furado que ele trocaria mais rápido que o motorista, era o que pensava. O pai encontrou-o sentado perto do ônibus, bebericando café morno, nas costas uma mochila que certamente o tal Conrado da pensão arranjara, pois nunca a tinha visto. Benedito sentiu a mão pesada em seu pescoço e num instante viu o chão de pedrinhas se aproximar de seu rosto. Os demais passageiros se afastaram, o motorista fez que ia se aproximar, mas entendeu ligeiro o que se passava e recuou. O pai berrava com Benedito, chamando-o de tantas coisas.

O rapaz permanecia calado, pensando que se o ônibus não tivesse parado tão perto — não contavam ainda nem duas horas de viagem quando o pneu furou — ele poderia chegar na cidade nova e de lá avisar ao pai que ia ficar ali porque ali ganhava-se mais, porque não queria trabalhar da madrugada até o anoitecer, porque queria sim trabalhar, mas não como o pai, não como uma mula. Mas ficou calado, aguentou a surra diante dos passageiros e voltou com o pai.

Em casa, apanhou mais. Que não tornasse a fugir, que se fugisse nunca mais pisasse na casa. Se tornasse a ir embora assim, como um ladrão, que não voltasse nunca, que esquecesse o pai, os irmãos, a mãe. Quando ouviu que teria que esquecer a mãe, sentiu uma dor pior que a da surra.

Seis anos sem dar notícias, pensa a mãe. Seis anos que não te conheço. Não sei mais quem é esse rapaz em minha frente. Meu coração o reconhece, mas seu rosto é apenas a sombra familiar de alguém que eu muito amei. Pensa assim, mas nada diz, apenas observa o filho mais velho, o bendito Benedito, sua antiga criança tão amada. Dera à luz ali na sala, teve ajuda da vizinha, finada dona Garcia, que mais falava que ajudava, mas assim não pariu só. Ninguém devia parir só, pensa agora enquanto recorda, mas pensa só no fundo de sua consciência, pois na superfície se preocupa mesmo com o que vai acontecer quando o marido chegar da fábrica.

É que ele proibiu a volta de Benedito. Não sabe porquê, mas para o marido, abandonar a casa é um pecado, um crime. Nunca perguntou, ele nunca disse. Para ele é assim. O filho desertor é o pior dos criminosos.

Nos dias seguintes à briga, o menino ainda pequeno sentiu a estranheza na casa. As vozes que às vezes eram muitas, silenciadas. Benedito recolhera-se, emudecera. Voltou para oficina. O homem que falara com ele deixou a pensão naquela mesma noite, pensando que o pai do jovem poderia voltar. Deixou as contas penduradas, todos os jantares teriam que ser pagos pela própria dona da casa, que ao ver que tinha sido enganada, apenas suspirou profundamente. Nem era a primeira vez.

A vida retomou seu ritmo. Mas Benedito tinha ido longe demais. Tinha provado o sabor do mundo, esse sabor agridoce da liberdade. Pensava nisso obsessivamente. Planejava fugas, prestava atenção em homens desconhecidos que vinham até a oficina, talvez outro deles fizesse a mesma proposta. Nunca fizeram.

Passou a ser ainda mais organizado. Antes, gastava algumas moedas com pipoca doce no parquinho, nos feriados, ou ia ao cinema aos domingos e levava a irmã, que gostava de ver filmes de caubói. Parou com isso, economizaria mais se não fosse ao parquinho ou ao cinema. Um dia, dois anos depois da surra que o mudara tanto, achou que tinha o suficiente. Arrumou as coisas durante uma semana, levando de cada vez um pouco de seus pertences para a oficina. Quando levou tudo, fez uma trouxa e enfiou num vão do muro da casa da finada dona Garcia — como pensavam que a velha era bruxa, ninguém ia mexer ali. Despediu-se do patrão, disse mesmo até amanhã como se fosse voltar.

Olha o relógio no pulso. Sabe que o pai está para chegar. Não vai embora, mas também não deseja tanto assim estar ali. Deseja apenas dizer que voltou, que a família ainda é a família dele, que não esqueceu ninguém. Mas agora que se aproxima a chegada do pai, ele pensa se não teria sido melhor mandar um telegrama.

Mudejo está na porta, sentinela da família. Vê uma cadela que passa, e gostaria de segui-la, mas sabe que está testemunhando algo muito maior que ele, que as moscas em seu rabo, que as cadelas. Então apenas gane baixinho, ao que ela se volta, e rebola marota como quem diz que ele não sabe o que está perdendo. Mas Mudejo é firme. É leal. Ficará ali para tomar parte — ainda não sabe de que ou de quem, mas a uma ordem daquela mulher de olhos manchados, ele saberá o que fazer.

— Quando eu fui não tinha ainda esse cachorro.

— Não, papai achou ele na fábrica. Tinha uns irmãozinhos, mas papai só podia trazer um — é o pequeno que responde, ansioso por dizer algo, uma vez que se sente tão distante dos assuntos que os outros evocam com os olhos. De Mudejo ele pode falar, porque o vira chegar e se lembrava bem. Não tinha dois anos que o cão era parte da família, ele se lembrava bem.

— Como é o nome dele?

— Mudejo.

Benedito riu, mas um riso triste. Pergunta:

— E os irmãozinhos dele? Outra gente levou?

— Não, papai teve de afogar.

Carmelita baixa os olhos. A mãe toma a xícara vazia das mãos de Benedito. Explica:

— Era uma ninhada de seis. Não podiam vir pra cá os seis. Ninguém na fábrica quis. Teu pai achou que fosse melhor assim do que serem judiados. Aqui é uma judiação com cachorro de rua, até veneno colocam. Uma maldade sem fim.

Ela fala sem parar, nervosa. Tem uma necessidade dolorosa de explicar ao rapaz que o pai não é ruim por ter matado filhotes de cachorro para que sofressem menos. E seus olhos estão outra vez do jeito que o filho mais novo viu muitas vezes depois do segundo sumiço de Benedito.

Quando ele chorava, Carmelita vinha ajuda-lo, a mãe ficava alheia, os olhos muito cansados. Disso ele lembra melhor. Também lembra que a mãe fazia cuscuz naquela noite, ele adorava cuscuz. E era especial aquele, porque Carmelita ganhara um pouco de manteiga ao ajudar a limpar a casa da Soledade no fim da rua. Soledade não podia pagar uma faxineira, mas tinha aquela dor no ciático, precisava de ajuda, oferecia às meninas da rua o que havia em sua geladeira, os olhinhos das crianças aproveitando o frescor da porta aberta tanto quanto a pele, algumas arrumariam a casa de Soledade apenas para aproveitar aquele frescor. Naquele dia, Carmelita ganhara manteiga e um doce de goiaba que comeu sozinha no caminho, um pequeno segredo, só dela. Depois, sentiu-se muito culpada.

Anoitecia. Benedito tardava a chegar, o cuscuz separado para ele esfriando na mesinha. A mãe começou a apertar o terço, a olhar o santo. O pai chegou e sentiu como se a história se repetisse. Dessa vez, não demorou, mas quando chegou à oficina, não teve tempo de perguntar nada, pois foi Ramalho quem quis saber:

— Bené tá melhor?

Com um custo entendeu que Benedito mandara o recado pelo colega, dizia estar sentindo muita dor no estômago, que faltaria o trabalho. Ramalho apenas dera de ombros, mas ao ver o pai do funcionário, achou certo perguntar se o menino ia bem. Não, ele não apareceu aqui hoje. Sim, ele pegou o pagamento da semana ontem. E quando o pai entendeu, voltou para casa, as pernas trocadas, sentindo um aperto doloroso no peito. Então o menino se fora mesmo.

Ao entrar em casa, chamou a mulher de lado, mas a casa tão pequena, as crianças ouviram. E mesmo se fosse grande, ouviriam o grito da mãe, porque a rua inteira ouviu. Entenderam que nunca mais veriam o filho, porque ele tinha escolhido partir, porque o pai o proibira de voltar, porque ele tinha feito uma escolha e não podia mais voltar atrás. E com o tempo, outra vez, a vida voltou ao normal.

Em seis anos, conseguiram trocar as redes por um beliche para as crianças. Fizeram um cômodo a mais, um puxadinho a servir de quarto, e agora os meninos não precisam dormir na sala. A sala até tem um sofazinho de segunda mão, coberto com um pano de crochê feito pela mãe. Mas nem sinal de geladeira, pensa Benedito, lembrando da água gelada que bebe no filtro do serviço.

Ele é motorista agora. Viaja por toda a cidade, às vezes precisa sair até do estado. Caminhonetes, kombis, carros de passeio. Até caminhão já dirigiu. Aprende rápido, é ágil. Não ganha muito dinheiro como gostaria, mas ganha mais que o pessoal da fábrica, e trabalha menos. Tem folgas, e agora mesmo conseguiu acertar a escala com um colega, de modo a poder ir visitar a família.

Família.

Ele se lembra do relógio. Olha novamente o mostrador. Aguarda. Os outros o observam, silenciosos. Até Mudejo entende e pela primeira vez, prefere não latir ao perceber a chegada do pai.

Benedito olha a entrada, o espaço entre o portão enferrujado e a sala como se fosse uma longa estrada, como aquelas em que está tão acostumado a conduzir, e fecha os olhos por um momento, antecipando a colisão. Ao ver o homem que chega, trazendo o rosto cansado, os ombros encurvados, muito mais velho do que se lembrava, embora ainda o mesmo, sente uma melancolia profunda e um desejo de se ausentar outra vez. Em vez disso, se levanta e fita o homem que, numa expressão de surpresa, se mantém à porta olhando o filho, esse filho bem arrumado, um homem, que ao sair era apenas um rapaz, um rapaz proibido de voltar. Benedito se lembra que tinha sido proibido de voltar. Mas dá um passo em direção ao homem que o observa e diz apenas:

— Pai.

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