Escavação

Rute Ferreira
1 min readOct 3, 2024

“Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu.” — Hilda Hilst

Flores, de Henri Fantin-Latour, 1860

Eis a canção: ela fala de rios — o som que chega aqui no entanto

é plantação.

Escavo com meus dedos e vejo nas unhas as marcas que fingi não enxergar quando teus olhos muito argutos adivinharam meu querer.

A canção ressoa e eu recordo: os rios as róseas flores o silêncio perturbado o desejo. Principalmente o desejo.

Recentemente descobri que o guarimã avisa de águas e me parece certo que cresça em terra apesar disso.

Destranco cadeados de represas e observo curiosa a plantação levada embora

o som da canção diminui enquanto o sol se recolhe e em seu lugar a lua

[então minguante

se distribui desigual sobre as sementes.

Era desigual desde o começo — quase ouço o verso da canção mas logo deixo

que as indagações façam morada em outra parte

não em mim

pois sei bem onde piso e sob minhas unhas ainda protejo a plantação — semente e flor

caule afogado em águas.

--

--