Escavação
“Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu.” — Hilda Hilst
Eis a canção: ela fala de rios — o som que chega aqui no entanto
é plantação.
Escavo com meus dedos e vejo nas unhas as marcas que fingi não enxergar quando teus olhos muito argutos adivinharam meu querer.
A canção ressoa e eu recordo: os rios as róseas flores o silêncio perturbado o desejo. Principalmente o desejo.
Recentemente descobri que o guarimã avisa de águas e me parece certo que cresça em terra apesar disso.
Destranco cadeados de represas e observo curiosa a plantação levada embora
o som da canção diminui enquanto o sol se recolhe e em seu lugar a lua
[então minguante
se distribui desigual sobre as sementes.
Era desigual desde o começo — quase ouço o verso da canção mas logo deixo
que as indagações façam morada em outra parte
não em mim
pois sei bem onde piso e sob minhas unhas ainda protejo a plantação — semente e flor
caule afogado em águas.