Rascunho

ideias de des/escritura

Rute Ferreira
2 min readAug 29, 2024
Paisagem com cavalo branco, de Camille Pissarro

A solidão do cavalo no sítio me lembra a minha, pensei em começar assim. Apago. O cavalo já não está no meu campo de visão e mesmo assim sinto sua indefectível ausência como a presença absurda do vazio — não sei se fui clara: apago.

Reescrevo. Por que eu quero escrever sobre cavalos? Não, não sobre cavalos, mas sobre este cavalo em particular, este cavalo solitário que se alimenta e nunca, nem se me visse, pensaria em mim ou na minha solidão.

Não está bom. Apago. Escrever sobre um cavalo parecia fácil, agora não mais. Penso na forma. Um cavalo combina mais com poesia ou prosa? Mas não basta pensar no animal, também há que se pensar na solidão. Reescrevo: Apago.

Mais uma vez. Penso nos cavalos dos mitos, em Pegasus, nos bíblicos atrelados às carruagens da Rainha de Sabá, naqueles de Guimarães Rosa, assassinados, naquela de Vronski, morta na corrida. Nenhum deles se parece meu cavalo — já o chamo de meu porque, sem nunca ter me visto, ele se tornou indubitavelmente parte da minha coleção de curtíssimas obsessões.

Isso não me ajuda, então apago. E se eu inventar um conto, ficção mesmo, começo meio e fim, cliffhanger, flashbacks, a infância do cavalo, seu gosto por um certo tipo de quintal e de capim, sua aspereza e doçura sobrepostas. Nada disso.

Então entendo: é que o cavalo me pertence. Não poderá nunca ser parte de um conto, poema, crônica, canção. A impressão do bicho ficará apenas em meus olhos e, embora pense em histórias para ele, esqueço e apago. Deliberadamente.

Mas reescrevo. E começaria assim:

“Ela viu o cavalo sozinho no quintal e, por um instante, contemplou no bicho a sua própria solidão.”

Apago.

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